IMAGINE

Imagine-se diante de uma grande pintura mural.

Colocado a um metro da parede na qual ela se encontra, o seu campo de visão é bastante reduzido. Você percebe com grande nitidez os detalhes que estão ao alcance dos olhos, mas não pode fazer nenhuma ideia da imagem completa da pintura.

Recue alguns metros e você poderá vislumbrar o todo. Com isso (e só com isso), entenderá a função desempenhada na obra por aquele detalhe específico.

Isso não é em nada diferente do que acontece em qualquer processo político. Sem a visão do contexto do qual faz parte um determinado episódio, o observador fica reduzido a uma análise estreita, limitada e, portanto, quase sempre equivocada.

Se, contudo, mantiver um certo distanciamento histórico-factual, obterá uma noção mais ampla do quadro como um todo, o que lhe permitirá compreender o que realmente sucede.

Trago isso à baila, neste momento, porque estamos presenciando a História do Brasil a se construir diante de nossos olhos, minuto a minuto. Somos testemunhas do desenvolvimento de um dos momentos mais delicados da vida brasileira em muito, muito tempo.

Compreender este momento ou não, em toda sua extensão e profundidade, é a diferença entre moldar positivamente os desdobramentos que virão, ou entregar para as próximas gerações um país, na melhor das hipóteses, inviável. Na pior, destroçado.

No último domingo, dia 30 de outubro, demos o primeiro passo na tentativa de superar um dos períodos mais difíceis desde o nascimento do Estado brasileiro. A eleição de Lula é um evento extremamente auspicioso, mas é apenas isso mesmo, um evento. Como disse, o primeiro passo. Só o primeiro passo. Isolado, pode significar pouco. À luz de todo o processo histórico recente pelo qual vem passando nosso país, contudo, ele termina por ser um detalhe que exerce uma função específica fundamental em todo o conjunto. Visto assim, pode ser muito mais bem aproveitado por nós, os atores políticos do processo, para dar-lhe consequências mais positivas, consistentes e duradouras. E, assim fazendo, plantar os alicerces da retomada da construção do grande país que o Brasil tem tudo para ser.

Conforme procurei demonstrar em meu livro “O que você pensa que você pensa não é você quem pensa – a guerra híbrida no Brasil” (CRV Editora, 2021), há pelo menos dois séculos os Estados Unidos da América do Norte, hoje a maior potência econômico-militar da História humana, trava uma luta de dominação, ao redor do globo, no intuito de impor ao mundo os seus interesses geopolíticos.

Em 2013 esse país viu abrir-se uma janela de oportunidade para recuperar o controle sobre o maior país da América Latina, que ameaçava escapar-lhe desde que, onze anos antes, um governo voltado à soberania nacional ali chegara ao poder.

Abriu fogo então, contra o Brasil, com todas as baterias da guerra de quarta geração (a Guerra Híbrida), em busca de obter o “regime change” que lhe permitiria entronizar no governo um grupo que lhe fosse fiel.

O sucesso absoluto que ele e seus aliados internos obtiveram num primeiro momento, com o golpe judiciário-político-militar-midiático que destituiu do poder a presidente Dilma Roussef, e empossou, em seu lugar, o títere Michel Temer, viu-se parcialmente comprometido quando, na eleição seguinte, não conseguiram dar a vitória à direita moderada, como haviam planejado, e foram obrigados a engolir o nazifascismo encarnado por Jair Bolsonaro.

Seguiram-se quatro anos de terror. Sem desejar, haviam criado um monstro maior e mais terrível do que poderiam ter previsto. Acharam a princípio que poderiam mantê-lo sob o jugo de sua bota, mas se enganaram.

O desastre foi de proporção tal que desviou o país do curso aceitável até mesmo pelas forças que lhe deram causa. A criatura terminou por apavorar o próprio criador. Assim, uma significativa quantidade dessas forças compreendeu a necessidade de abortar o processo de fascistização do país enquanto não se tornasse irreversível.

Até porque, com as armas clássicas dessa distorção política, cuja eficiência nefasta já é bem conhecida, o monstro, mesmo nesse curto lapso de tempo, lançou raízes sólidas em nosso solo.

Percebendo isso, e avaliando a dificuldade que imporia ao objetivo comum de retirar Bolsonaro do poder, facções políticas dos mais diversos matizes do espectro ideológico se uniram para consegui-lo. Deu-se então, em 2022, a formação da mais ampla frente política já vista em nosso país desde aquela engendrada na década de 1980 para derrubar a ditadura militar.

Graças a isso a vitória veio e, neste momento, é tudo o que importa.

Entretanto, e pela própria natureza dos pressupostos do triunfo, os passos seguintes serão da mais extrema delicadeza.

Afinal, à testa do movimento que derrotou o fascismo está justamente aquele organismo cuja derrocada constituía o objetivo específico dos artífices da guerra híbrida deflagrada contra o Brasil, em primeiro lugar.

Mas integram outras instâncias importantíssimas desse mesmo movimento inúmeros outros componentes, cuja posição naquele conflito, ainda tão recente, foi na trincheira oposta. Quando não figuravam entre tais artífices, eram seus aliados ou estavam a seu serviço.

Como visto antes, Lula foi o principal inimigo dos Estados Unidos e seus auxiliares domésticos, entre 2013 e 2018. É possível imaginar que agora, meros quatro anos depois, como num passe de mágica, possa ter-se transformado em aliado incondicional?

Tenho minhas dúvidas. Mas ora, dirá alguém, Joe Biden, o presidente daquele país, não foi o primeiro (ou um dos primeiros) a reconhecer a vitória do petista publicamente? Não era ele, aliás, que inúmeras vezes, nos últimos meses, avisou insistentemente que os EUA não tolerariam um golpe de estado no Brasil, que mantivesse Bolsonaro ilegalmente no poder? Isso tudo não mostra o quanto estão interessados na nossa democracia?

A resposta para as duas primeiras questões é sem dúvida afirmativa. Até porque são verdades factuais, sem possibilidade de interpretação subjetiva. Já a terceira e última é desse calibre e, para a ela, a minha resposta seria: “mais ou menos”.

Segundo penso, os EUA superaram amplamente o imperialismo belicista violento que dominou suas ações durante todo o século XX. Brasil 1964, Chile 1973, etc., etc., etc., pertencem ao passado. Hoje perceberam que, em inúmeras situações, podem conseguir o mesmo efeito, ou até melhor, em guerras incruentas, sem derramar sangue.

Há outras – como demonstra o episódio Rússia X Ucrânia, em andamento – em que pode não haver alternativa.

Mas não é o caso do Brasil, conforme já ficou provado. Ora, se o regime democrático ainda se constitui no melhor ambiente no qual se desenrola uma guerra híbrida, e se Bolsonaro constituiu, desde sempre, uma ameaça real à democracia, então era impossível mantê-lo ou, mesmo, suportá-lo.

Vai daí que se Lula, na liderança de uma frente amplíssima, era o único meio de tirá-lo do caminho, então toda a força a Lula.

Isso, todavia, não quer dizer, em absoluto, que os interesses, sejam os geopolíticos estadunidenses, sejam os da parcela da classe dominante brasileira que apoiou o golpe contra Dilma e agora respaldou a candidatura de Lula, tenham mudado. Seria utópico imaginar tal coisa.

Significa tudo isso, do meu ponto de vista, que a luta continua. Um revés momentâneo pode fazer com que a fera efetue um recuo tático, mas jamais que renuncie à vitória final.

A guerra híbrida não terminou e nem tem data para terminar. As próximas batalhas serão decisivas. O inimigo saiu enfraquecido desse último embate mas não está, nem de longe, isolado. Por isso mesmo, não se pode tomá-lo por definitivamente derrotado.

Há que se prestar atenção aos episódios que vêm se verificando nos dias seguintes às eleições.

A resistência de algumas camadas médias, fanatizadas pelo período bolsonarista, em aceitar o resultado eleitoral que lhe foi desfavorável, é um fator a ser levado em conta. Essa horda de arruaceiros, que se supõe dona dos símbolos nacionais, bloqueia rodovias ilegalmente, infesta as redes sociais e se posta à frente dos quarteis a exigir um golpe de estado patrocinado pelas Forças Armadas, constitui um potencial batalhão, nada desprezível, a serviço dos adversários da soberania nacional.

São potenciais soldados, prontos e acabados, verdadeiros robôs a serem atirados à frente de combate.

Aos verdadeiros defensores do Brasil cabe incrementar suas forças sempre e cada vez mais. A tarefa mais importante e imediata constitui lutar pela manutenção da coesão endógena da grande frente que ganhou as eleições. Isso permitirá ampliar a capacidade de resistência às investidas do inimigo principal, porque colocará contra ele alguns de seus antigos e importantes aliados.

Sem isso, ficaremos mais vulneráveis às operações psicológicas, que, sabe-se agora, podem ser desfechadas internamente. Já se sabe que “terreno humano” fértil, existe.  E como se descobriu recentemente, a respectiva doutrina, coração da guerra híbrida, que foi criada, desenvolvida e consolidada no seio militar estadunidense, tem uma correspondente tupiniquim.

O Exército Brasileiro possui um Manual de Campanha, cujo código é C 45-4, intitulado “Operações Psicológicas”. São 199 páginas da mais sórdida instrução de como escravizar os cidadãos de uma Nação fazendo com que se tornem soldados a lutar em favor do que desejam os comandantes militares (sem que se explique o modo através do qual se define tais desejos, ou se definam os controles aos quais são submetidos). A não bastar, ensina ainda modos de fazer com que o cérebro dessas pessoas se transforme no próprio campo de batalha, o “teatro de operações” no qual se desenrola o conflito.

Significa isso dizer que a guerra híbrida no Brasil de hoje não é mais apenas um conflito externo, deflagrado por potências estrangeiras, com o auxílio de forças internas. Passou para o âmbito doméstico, e pode, perfeitamente, ser convertida em uma guerra civil. Ou seja, de brasileiros contra brasileiros.

É absolutamente consensual, entre quem defende a soberania nacional, que está no seio das Forças Armadas a maior fonte de autoritarismo do país. A tutela que os militares se julgam no direito de exercer sobre a Nação Brasileira tem se revelado constante, resistente e resiliente, ao longo de séculos.

Desarmar essa bomba é tarefa hercúlea e, a partir de janeiro de 2023 estará a cargo de Lula e sua equipe, que para isso precisa estar coesa e, portanto, forte. Caso não tenha êxito completo na missão, estaremos permanentemente sob a sombra da espada de Dámocles que responde pelo nome de C 45-4.

Temos, portanto, de nos manter atentos, para não permitir que tentem nos manipular, conscientes, para impedir que consigam, e mobilizados, para dissuadi-los de sequer tentar.